quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Samba do Arnesto

É um samba de Adoniran Barbosa ( 1910/1982) e Alocin – Nicola Caporrino (1927/) de 1953.

Foi composto em 1953 mas gravado em 1955 pelos Demônios da Garoa.
Para compreender melhor um pouco a letra nada melhor do que ouvir as explicações do próprio Ernesto, que inspirou o samba e dos compositores Alocin e Adoniran.

Adoniran Barbosa

VERSÃO DO ERNESTO (ARNESTO)

”Eu sou o Arnesto do Brás. Nasci na aorta do Brás, na Rua Flora, numa travessa entre a Rua Caetano Pinto e a Rua Piratininga. Nasci em 1914. Dia 15 de dezembro.
Meu pai veio da Itália para cá com três aninhos, coitadinho. Três aninhos é considerado brasileiro. Ele nasceu em 1893. Minha mãe também viera em 1896 da Itália com a família dela. Quando eles se conheceram, houve aquela força magnética do olhar. Um olhou para o outro. O outro para o um. E casaram-se. Desse casamento eu nasci. E também meu irmão. Ele no começo de 1913. Eu nasci em 1914, no fim. Ele morreu com 90 anos, coitadinho. E eu sobrevivi. Quando ele morreu, eu tinha 88 anos. Agora tenho 93 anos e meio. E cá estou conversando com você. Mas você quer é saber do samba?
Ernesto ou Arnesto?
O ano era 1938. Violonista, Ernesto foi chamado pela Rádio Bandeirantes para acompanhar as canções napolitanas de Vicente Carbone. O programa começava às 11h e ia até 11h30. Na meia hora seguinte, o violão de Ernesto acompanhava um músico português com seus fados. E terminava a manhã de domingo tocando canções brejeiras e sambas-canções de uma moça muito bonita conhecida como Nhá Zefa.
- Eu tocava violão muito mal.
Todos os domingos, durante um ano, Ernesto se apresentava nos três programas. Meia hora. Meia hora. Meia hora.
- Ernesto, você não quer dar uma canja comigo na Record?
O convite de Nhá Zefa ao músico levava no ventre o samba que mudaria o nome, a índole, o bairro e a própria vida de Ernesto. Pois esse convite deu à luz o "Samba do Arnesto". Ou, pelo menos, iluminou o caminho de Ernesto para entrar nas cercanias de Adoniran Barbosa. Em todo caso, o convite tinha luz. Com 24 anos, Ernesto estava na primavera da idade para andar por cá e por lá. Terminado o programa com Nhá Zefa ao meio-dia e meia na Bandeirantes, eles atravessavam o Viaduto do Chá e entravam no estúdio da Record, no 13º andar de um prédio da Rua Conselheiro Crispiniano.
- Adoniran, esse rapaz aqui é o Ernesto, toca violão e veio me acompanhar no programa.
Adoniran estende a mão a Ernesto. E solta a voz esganiçada:
- Muito prazer! Muito prazer! Me dê a mão.
Três domingos se passaram depois daquele dia. Novo encontro no bar. A voz rouca faz o pedido ao violonista:
- Você tem um cartão para me dar?
Ernesto põe a mão no bolso e oferece seu cartão.
- Arnesto Paulelli!, lê Adoniran. Desconfiado, Ernesto retruca:
- Adoniran, eu sou E-rnesto. Não sou Arnesto.
- É AR-NES-TO. E teu nome dá samba. Eu vou te fazer um samba. Você aduvida?
Ernesto o olhou meio assim, de lado, e depois concordou:
- Já não aduvido mais.
O dono da voz rouca que cantou os sambas mais paulistanos de São Paulo sela a promessa com um abraço no novo amigo.
- Pode me cobrar o samba, Arnesto. Mas, cartão, este eu não tenho para te dar.
Naquela época Adoniran ainda não fazia sucesso. Pondo a mão no buço, Ernesto imita imponente o sambista, fazendo a boca apertada e mostrando o bigodinho.
- Não. Não. Era um pilantrão, coitado. Fumava feito maluco e bebia cachaça alucinadamente. Cachaça mesmo, pura. Mas era uma bela figura, o Adoniran.
Em 1936, Adoniran Barbosa gravava o seu primeiro disco em 78 rotações, Agora podes chorar (Colúmbia, número 8171). Disputava um lugar profissional e de destaque nas rádios da época, sobretudo como ator de rádio. Mas só fazia pontinhas ou papéis secundários. Nos bares do centro paulistano, onde estavam as principais rádios, Adoniran estava atento a tudo que podia dar samba.
A promessa ao amigo Ernesto ficou guardada. Foi cumprida 17 anos depois.
Fã de futebol
Ernesto Paulelli é o Arnesto do samba. Está sentado na mesa de centro de sua sala, o lugar mais próximo que conseguiu colocar-se para não perder um só lance da semifinal de futebol entre Itália e Espanha (campeonato europeu 2008), que acaba de ir para a prorrogação. Seu Ernesto tinha desmarcado a entrevista inicialmente agendada às 16h. Mas, como não dá furo em compromisso, pediu à filha Valéria que ligasse e marcasse às 18h. O motivo, não justificou. Decerto queria assistir a uma de suas diversões preferidas sem amolações. Nos pênaltis, a Itália perde de 4 a 2. Vagarosamente, seu Ernesto se levanta.
- Vamos começar?
Seu andar é lento e arrastado do lado esquerdo, seqüela de um derrame que o acometera três anos antes. Ele senta-se na grande poltrona amarronzada, que faz combinação com o relógio cuco de três cordas, colocado na parede perpendicular à poltrona para avisar os moradores e as visitas, a cada quarto de hora, que o tempo corre.
O patrono do samba de Adoniran é um senhorio de traços maturados e rosto longilíneo harmonizado com lábios e nariz aguçados. Tem estatura mediana e cabelo já descolorido, que ainda resiste na cabeça apenas dos lados e atrás.
Vestido assim, de blusa de lã cinza sobre uma camisa azul xadrez para se proteger do recém-chegado inverno sem garoa, seu Ernesto mais parecia uma folha de outono. Só a seguir eu descobriria que a folha envelhecida ainda não se desprendera da árvore construída. A árvore do samba e a de seu personagem, Arnesto.
Vendedor de chuchu
Quando pequenino eu engraxava sapatos. Até assobiava enquanto esfregava o couro. E ganhava um dinheirinho para ir à matinê. Meu pai tinha o ofício de sapateiro. Não era uma pessoa abastada. Em 1920, eu ainda morava no Brás, na Rua Melo Barreto. Em 1922, mudamos para a Mooca. Havia muito chuchu no nosso quintal. Eu saía com duas cestas de chuchu andando pela vizinhança e perguntava à freguesa:
- Como chama a sua vizinha, dona Matilde?
- Essa daqui é a Margarida.
Aí eu ia até lá:
- Dona Margarida, a senhora quer chuchu?
- E como é que você sabe que eu sou a Margarida?
A curiosidade feminina é uma coisa fantástica. Aí eu explicava:
- É que a vizinha aqui do lado, a dona Matilde, fala tão bem da senhora. Que a senhora é uma vizinha maravilhosa...
- E quanto é meia dúzia?
Enquanto embrulhava, eu já perguntava o nome da outra.
- Dona Dália, bom-dia, a senhora precisa de chuchu?
A mesma pergunta vinha em seguida. Assim eu vendia as minhas duas cestas. E os bolsos ficavam cheios de níqueis.
O personagem Arnesto na não-ficção figurou em vários papéis. Além de chuchu, vendeu secos e molhados, miudezas, trabalhou com jogo do bicho e tocou violão em cantinas. Em 1973, Ernesto aposentou-se como vendedor de produtos químicos. Mas não sossegou. Aos 60 anos, formou-se em direito pelas Faculdades Integradas de Guarulhos (FIG). Antes, fizera o supletivo para adultos - o curso de Madureza - para concluir o ginásio e o colegial. Trabalhou como advogado na área de Direito Civil por 30 anos e só parou em 2005 devido ao AVC, que hoje o obriga a praticar fisioterapia todos os dias, tempo que divide com o estudo diário de música, regras gramaticais e matemática.
Encostado na poltrona, seu Ernesto mergulha em lembranças. Em 94 anos, a memória o acompanha lúcida e rápida. Não que não dê mancadas. É quando seu Ernesto coloca a mão direita sobre a testa, arqueia o sobrolho, bagunça o cabelo, e o olhar passeia por toda a sala sem focalizar nada. Não vencendo o lapso, ele recorre à sua memória externa: sua filha do meio, Valéria Paulelli, 60 anos, que mora com o pai e o marido.
- Valéria, como era o nome da rua onde ficava a loja do seu Afonso Barbato?
- Valéria, como é o nome do hospital da Rua do Oratório?
- Valéria!
- Mas, o que eu estava contando mesmo?
O samba na rádio
Quando jovem, Ernesto também trabalhou como gerente de uma loja de miudezas e inventou de vender lá as ceras Recorde (famosas, naquele tempo). Esperto, ele próprio negociou com Salvador Basile, o dono da fábrica, e conseguiu a mercadoria consignada. Montou uma pilha de ceras do chão ao teto na entrada do estabelecimento e anunciou um preço menor que o da concorrência. O sucesso foi tão grande que Basile lhe preparou uma caixa com todos os produtos que vendia: cera, lustra-móvel, inseticida. E deu de presente ao vendedor:
- Ernesto, te dou 500 mil réis por mês e vou te dar interesses na firma. O senhor vai ter uma porcentagem sobre o meu lucro.
Em 1941, casou-se com Alice. Seu chefe, Salvador Basile, foi o padrinho de casamento e de batismo de sua primeira filha Vanda, nascida em 1942. Na seqüência, vieram o José Carlos, Vicente, Valéria e, por último, o Zé. Eram cinco filhos.
Sobre o samba de Adoniran, Ernesto nem se lembrava mais do prometido quando o escutou pela primeira vez no rádio.
- Foi em 1955. A minha patroa, Alice, estava entretida na máquina de costura, botando botões na camisa, quando ouvimos na Rádio Bandeirantes:
O Arnesto nos convidou... PUM!
Prum samba ele mora no Brás... PUM!
Nóis fumo e não encontremos ninguém.
- Alice! Alice! Essa peteca é minha!
- Ernesto, que peteca?
- Esse samba aí, Alice, o Adoniran me prometeu. Eu não falei que ele tinha me prometido? Faz quase 20 anos!
E Alice chorou abraçada ao marido. Seu Ernesto confessa:
- Eu também. Pra dizer a verdade, não deu pra segurar. Diz que homem não chora. É mentira. Chora de emoção, de alegria, de tristeza. Eu chorei de alegria.
Só dois anos mais tarde é que Ernesto se encontrou com o amigo Adoniran. Estava trabalhando no escritório da Cera Recorde quando Lívio Delmare, músico de canções italianas, foi convidar Ernesto para participar de um programa na TV Record, todas as quartas e quintas à tarde. Ele foi. Enquanto afinava seu violão, ouviu uma voz grave:
- Arnesto, que achou do samba? Você gostou?
- Ô Adoniran, se eu gostei? Você me abriu no meio, rapaz. Eu adorei teu samba!
- Então me dá um abraço, que agora você é meu compadre.
O sambista considerava suas composições como filhas. Ainda hoje, depois de contar inúmeras vezes o episódio, seu Ernesto se comove:
- Muito obrigado, compadre.
Adoniran Barbosa deu a Ernesto não apenas uma afilhada. Deu-lhe outro nome e a fama de furão. Mais de 50 anos depois de a música ser composta e entrar em todas as casas pela voz dos Demônios da Garoa, muitas pessoas ainda acreditam que a história é verídica e que Arnesto, realmente, deu um "bolo" nos convidados:
- Mas, então, o senhor não deu mancada, não?
Ernesto costumava se encontrar com Adoniran e certa vez, reclamou:
- Ô Adoniran, você me meteu numa treta. Por que você foi colocar que eu te dei um bolo, rapaz?
- Arnesto, se não tivesse mancada não tinha samba. Segura essa pra mim!
Como "recompensa" pela saia-justa Adoniran o presenteou com a partitura 001 dos irmãos Vitale: a primeira de "Samba do Arnesto", impressa pela editora dos irmãos. Adoniran deu a partitura autografada a Ernesto, e Alocin, parceiro do músico, assinou com um "de acordo" ao lado da homenagem. Hoje, está pendurada em seu quarto. E ainda tem dedicatória:
"Ao acadêmico Ernesto Paulella, a quem dediquei esta composição quando do seu lançamento, em 1955. Homenagem do autor, Adoniran Barbosa".

Adoniran Barbosa

VERSÃO DE ALOCIN:

A parceria Adoniran/Alocin (o apelido ser for lido de traz para frente resulta em Nicola), começou em São Paulo, nos idos de 1945.
“Eu trabalhava na Continental - fui promotor de vendas, técnico de gravação- e o Adonis ( é desse jeito que Alocin se refere ao amigo) na rádio Record . E a gente se encontrava num barzinho. Nosso contato era de irmão pra irmão; era uma amizade de boemia mesmo. Sabe como é?Na hora do almoço - continua- a gente ia até um bar lá na rua Barão de Paranapiacaba. O cardápio era muito simples: 3 pingas e um bolinho de bacalhau.O Adoniran era uma pessoa super pontual, afirma Alocin, mas eu sempre dava minhas mancadas. E numa das nossas viagens de volta de Guarujá para São Paulo, o Adoniran reclamou desse jeitão de Alocin. E não deu outra: o assunto virou samba. Para homenagear o Ernesto - um amigo dele, advogado que mora no Bixiga - colocou esse nome na música que acabou virando Samba do Arnesto. Que o Brasil todo canta.”
A primeira gravação do Samba do Arnesto- rotação 78 -, com o Adoniran cantando está na parede da sala do Alocin. Uma peça sagrada... A gravação com Adoniran não foi sucesso, mas com Demônios da Garoa, foi um estouro. Os direitos autorais da composição não deixaram Alocin rico, mas o livrou de um aperto daqueles:
“- Minha mulher Milita, tava na maternidade. E eu sem um tostão . Se não pagasse o hospital, não podia tirar minha mulher e meu filho. Daí recebi 51 mil réis e livrei a barra!Graças ao Arnesto.”

Adoniran Barbosa

VERSÃO DE ADONIRAN:

A história do samba do Arnesto (como ele mesmo dizia, é "Arnesto", com A) nasce de uma parceria com seu amigo Nicola Caporrino, que era técnico de som na gravadora Continental. Em depoimento ao programa MPB Especial, da TV cultura, o próprio Adoniran disse:
O Arnesto existiu... Mora no Brás, o malandro. É irmão do Nicola Caporrino. Ernesto Caporrino. Ele convidou a gente pro samba. Eu fui lá, com meus maloqueiros. Com fome... Disse que tinha comida... Não tinha nada, sabe? Cheguei lá... Você quer ver uma coisa? Marcaram meio-dia... Cheguei a uma. Tinha uma panela de arroz só com a casca do arroz embaixo. Eu raspei, porque eu cheguei com fome lá, raspei a panela. E o feijão, que não tinha mais nada, eu raspei o caldeirão de feijão... Porque eu tava com fome. Muita pinga no caminho, muita cana no caminho, ia chegar lá com fome, claro.
Segundo o pesquisador Celso de Campos Junior, autor da excelente biografia "Adoniran" (Editora Globo, 2004), a história toda tem a ver com o parceiro de adoniran, Nicola Caporrino. Mas é bem diferente daquilo que Adoniran contava. O fato é que, em meados da década de 1950, Adoniran costumava passar os feriados ou fins de semana com amigos no Guarujá. Nicola acompanhava Adoniran nestas viagens, mas de repente, viu-se em uma pendura financeira e resolveu não ir. Adoniran, numa tarde de sexta-feira, foi até a casa do amigo, acompanhado de seu cachorro Peteleco. Nicola pediu à mulher que dissesse a Adoniran que não estava em casa, e escondeu-se no quarto. Porém, o cachorrinho correu para o quarto do amigo fujão, que não teve outra alternativa a não ser desculpar-se e falar a verdade: não tinha dinheiro pra acompanhar.
Por fim, acabaram todos indo ao Guarujá e, depois de umas e outras, Adoniran sugeriu ao amigo que não mentisse, apenas "deixasse um recado na porta". Nicola devolveu: "Isso dá samba". Adoniran concordou e resolveu fazer um samba em homenagem a outro amigo, para quem havia prometido uma música há muito tempo, que até então não havia feito.
E aí, dez ou doze anos depois, Adoniran cumpriu a promessa e criou o "Samba do Arnesto", que se tornou um dos mais populares sambas de todos os tempos.


SAMBA DO ARNESTO
(Adoniran Barbosa / ALocin)


O arnesto nos convidô prum samba, ele mora no brás
Nóis fumo e não encontremos ninguém
Nóis vortemo cuma baita duma reiva
Da outra veiz nóis num vai mais
Nóis não semos tatu!
Outro dia encontremo com o arnesto
Que pidiu descurpa mais nóis não aceitemos
Isso não se faz, arnesto, nóis não se importa
Mais você devia ter ponhado um recado na porta
Anssim: "ói, turma, num deu prá esperá
A vez que isso num tem importância, num faz má
Depois que nóis vai, depois que nóis vorta
Assinado em cruz porque não sei escrever arnesto"















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