terça-feira, 20 de novembro de 2012

Disparada

“Disparada” é uma belíssima canção composta por Geraldo Vandré (1935) e Theo de Barros (1943) que ficou imortalizada no II Festival de Música Popular Brasileira da Rede Record, em 1966, na voz de Jair Rodrigues, acompanhado do Trio Maraiá e do Trio Novo.

O texto apresentado a seguir foi retirado na íntegra do site www.rabisco.com.br e foi escrito por Marcelo Xavier

“No certame, “Disparada” teria empatado com “A Banda” em seis a seis. Mesmo que as condições de escolha fossem nebulosas para a maioria do público, essa acabou sendo colocada como a versão oficial, que todos conhecem. No livro Uma Parábola, Zuza Homem de Mello apresenta toda a história. O episódio, como se sabe, é até hoje polêmico. Ainda hoje, seria difícil colocar qual seria a melhor, dado a qualidade e a originalidade das duas composições. A partir de então, ficou a pergunta de inefável resposta: qual é a melhor? “A Banda” ou “Disparada”? Sem dúvida, a questão nunca saiu de pauta. O certo é que é muito difícil saber qual delas é a melhor. São emblemáticas, porém, por lembrarem sempre ao tempo em que compositores defendiam suas canções com unhas e dentes, e seus respectivos intérpretes as defendiam como se tal empresa lhes valesse a vida inteira.
Chico Buarque de Hollanda, um jovem estreante de música e ex-calouro de arquitetura de 24 anos, conhecido por um sambinha digno de atenção — “Pedro Pedreiro” — , estimulado por seu pai, Sérgio e pelo quinto lugar em 1965, resolveu se inscrever novamente naquele ano, com uma marchinha lírica e candente — A Banda — no festival da canção da TV Record de 1966. Para defende-la, escolheu Nara Leão, que já era conhecida como musa da bossa-nova e que fazia sucesso com o show Opinião, com João do Vale e Zé Kéti. A produção do festival realmente investiu em Chico, que, parecia, ia pela contramão das canções de protesto que estavam na moda.
O diretor artístico do Festival, Solano Ribeiro, não gostou do arranjo que Geny Marcondes bolou para a música, na primeira fase. O público não conseguia ouvir a voz de Nara, que se perdia no meio dos instrumentos. A arranjadora chamou Altamiro Carrilho e montou uma bandinha de coreto. Solano foi enfático: “Se você for com essa bandinha, vai ser vaiado!”. Chico e Geny defenderam o arranjo com afinco. A solução salomônica foi colocar Chico na primeira parte, sozinho, com violão; depois, entrava Nara com o coreto. Dessa forma, o público poderia “entender” o que Nara cantava. E assim foi. No fim da primeira fase, era certo que “A Banda” estava na disputa. O concorrente, porém era fortíssimo: a toada-galope “Disparada”, de Geraldo Vandré.
Seguido de uma esperança sem fim, Vandré excursionou naquele mesmo ano pelo Nordeste levando a reboque Airto Moreira (do Sambalanço Trio), o violonista e baixista Théo de Barros e o guitarrista Heraldo, que formaram o Trio Novo. Foi durante aquela viagem que ele teve a idéia de escrever um longo poema sobre um vaqueiro que foi boi e que, um dia, “se montou”. Certo do poder de “Disparada”, Vandré mostrou a letra a Théo, que fez a música. Tiveram tempo de inscrevê-la no II Festival. Ambos sabiam do poder daquela melodia — que tinha como título original "Moda para Viola e Laço" — e foi com esse espírito que o grupo empreendeu verdadeira epopéia para concretizar o sonho de cantá-la no certame.
Conseguir a sonoridade ideal para “Disparada” se transformou em tarefa de gincana: a primeira delas era elaborar uma percussão original. Geraldo queria ruído de chicote na música. Tentaram com barras de madeira, mas não soou como ele queria. Então tiveram a idéia de usar uma queixada de burro. Onde encontrar? Acharam uma nas mãos de um músico de Santo André. Tentaram alugar o “instrumento”, mas o homem só aceitava o negócio se ele tocasse a queixada. Para levar, tiveram que comprar o exótico objeto, que seria tocado por Airto na apresentação. Zuza Homem conta que a queixada faz sucesso: era incrível como um instrumento sem ressonância (a “ressonância” ficava por conta dos dentes frouxos da queixada) pudesse fazer um som tão alto. A segunda tarefa: encontrar um intérprete convincente.
Todos conheciam Jair Rodrigues como o parceiro de Elis em O Fino da Bossa e acreditavam que ele fosse apenas um sambista nato. Nos bastidores, o pessoal da produção do programa sabia, porém, que Jair era um rapaz do interior, e que até ensaiava algumas modas de viola. Foi então que sugeriram seu nome para cantar “Disparada”. No começo, foi uma briga fazer com que Rodrigues fosse o escolhido. Era Vandré quem queria cantar. Solano Ribeiro insistiu: queria um cantor. “Quem?”, perguntou o compositor. Falou em Jair. Geraldo não quis saber. Disse que ele era sambista, e não tinha nada a ver. Solano explicou que via Jair pelos estúdios, sempre cantarolando modinhas sertanejas. Então Vandré e Théo foram pessoalmente falar com ele. Foram enfáticos: “Você tem que cantar a música sério, hein? Ela é muito importante para nós”. Para quem conhecia Jair cantando “Menino das Laranjas”, foi difícil acreditar que era ele, seríssimo nos ensaios, a declamar a primeira parte, concentrado: “Prepare o seu coração/Para as coisas que eu vou cantar/Eu venho lá do sertão/Eu venho lá do sertão/E posso não lhe agradar”. Solano fez Jair passar a música para o Vandré. Após a audição, não havia qualquer rastro de dúvida.
A APRESENTAÇÃO
A performance do Jair Rodrigues também pegou a platéia de surpresa, acompanhado pelo Trio Maraya e o Quarteto Novo, com Hermeto Pascoal de pianista, Théo de Barros na viola e Airto na percussão com a famosa queixada de burro. Nas finais, a preferência do público se dividiu de maneira ruidosa com a canção de Geraldo Vandré. Os dez dias entre as eliminatórias e a grande final se transformaram numa avalanche de opiniões. Nunca duas canções haviam dividido tanta opinião entre tanta gente diversa. A discussão aparecia em todos os jornais e em todas as conversas. Nos ônubus, nas ruas, restaurantes, bondes, na frente da tevê, nas casas, choviam bookmakers sobre quem seria o vencedor. No Paramount, as torcidas ensaiavam um conflito aberto. Nara e Jair interpretaram suas respectivas músicas. Em seguida, o júri se reuniu numa pequena sala para votar. Eram onze homens nervosos. Sete ficaram com “A Banda”, quatro com “Disparada”. Quando todos iam comunicar o resultado, receberam um recado de Chico: se ele fosse o escolhido, iria se recusar a receber o primeiro lugar sozinho.
O bode estava na saleta. Ele não sabia da decisão, mas não queria ser o único vencedor do certame. Inclusive, Chico gostava da sofisticação de “Disparada” e entendia perfeitamente o entusiasmo do público com a música. Todos estremeceram. Até porque a platéia viria abaixo ao saber do resultado da verdadeira decisão do júri. Pior: Chico ameaçou tomar ele próprio a decisão diante de todos, mesmo que fosse parecer um ato demagógico. Na parede, os onze decidiram reconsiderar o resultado. Afinal, o que são três votos? E o público não entendeu quando Chico Buarque sorriu ao ser anunciado o empate. Independente de qual fosse o resultado, a decisão do compositor o colocou no primeiro lugar junto com Vandré.
Zuza Homem de Mello revela que guardou no cofre de sua casa as cédulas de votação do festival da Record de 1966. No livro, ele diz que “A Banda” seria a real vitoriosa, por sete votos a cinco. O fato, por sinal, não é novo, e foi mostrado em reportagem da revista Realidade, em 1968. O fato curioso fica por conta do dado de que Chico teria exigido o empate, por acreditar na superioridade da canção de Vandré. Ou, por outras palavras, acreditando ser o virtual segundo lugar, Buarque teria, com o impasse gerado por ele, permitido que ele vencesse de qualquer maneira o certame sem, no entanto, saber que ele era o vencedor de fato. Chico foi interpelado a respeito da decisão do júri. Ele apenas disse: “O júri que decida o que quiser”. Se ele fosse escolhido o vencedor, desistiria do prêmio no palco. Sua demonstração de altruísmo e reconhecimento da qualidade musical de “Disparada” justificou a vitória de ambos.
Zuza conta a reação adversa de Jair Rodrigues na hora da premiação. Jair, ao ver que o júri havia escolhido “Canção para Maria” (Paulinho da Viola e Capinam), defendido também por ele, no terceiro lugar, ficou desolado. Se o escolheram, certamente que ele não seria o primeiro lugar. Logo ele, que havia dado toda a sua vida em favor de “Disparada” e que havia tanto se identificado com a letra e com o tema sertanejo, logo ele, um filho do sertão, preterido pelo júri, mesmo a despeito de sua interpretação convincente? Deu de ombros e, sem que ninguém o visse, resolveu sair de fininho e tomar uma num boteco da rua da Consolação, em frente ao teatro, e depois sumir. Eis que, de repente, alguém da produção lhe puxa pelo ombro. Diz para Jair esperar. O cantor explica que ele já havia citado no terceiro lugar. O homem insistiu: “fique, que tem uma coisa acontecendo”. Foi quando ele descobriu tudo: para o gáudio de gregos e troianos, “Disparada” havia empatado o primeiro lugar!
Então correu para o palco, feliz da vida.”

Disparada”, a mais vigorosa canção de protesto surgida até então, um verdadeiro cântico revolucionário. Musicado por Théo sobre uma versalhada que Vandré havia escrito durante uma viagem, “Disparada” é uma moda-de-viola com sotaque nordestino. “A intenção era compor uma moda-de-viola baseada no folclore da região Centro-Sul, porém nossas raízes se infiltraram no processo e resultou uma catira de chapéu de couro”, esclarece Téo na contracapa de seu primeiro elepê.

Uma nota pitoresca na apresentação de “Disparada” foi a utilização de uma queixada de burro como instrumento de percussão. A novidade, descoberta por Airto Moreira numa loja em Santo André, emprestou maior rusticidade ao acompanhamento, além de evocar uma visão forte da seca (A Canção no Tempo – Vol. 2 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34).


“DISPARADA”
(Geraldo Vandré e Théo de Barros)

Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar
Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar
E a morte, o destino, tudo, a morte e o destino, tudo
Estava fora de lugar, eu vivo pra consertar
Na boiada já fui boi, mas um dia me montei
Não por um motivo meu ou de quem comigo houvesse
Que qualquer querer tivesse, porém por necessidade
Do dono de uma boiada cujo um vaqueiro morreu
Boiadeiro muito tempo, laço firme e braço forte
Muito gado, muita gente, pela vida segurei
Seguia como num sonho, e boiadeiro era um rei
Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo
E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando
As visões se clareando, até que um dia acordei
Então não pude seguir valente em lugar tenente
E dono de gado e gente, porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente
Se você não concordar não posso me desculpar
Não canto pra enganar, vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado, vou cantar noutro lugar
Na boiada já fui boi, boiadeiro já fui rei
Não por mim nem por ninguém, que junto comigo houvesse
Que quisesse ou que pudesse, por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu querer ir mais longe que eu
Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo
E já que um dia montei agora sou cavaleiro
Laço firme e braço forte num reino que não tem rei
Na boiada já fui boi, boiadeiro já fui rei
Não por mim nem por ninguém, que junto comigo houvesse
Que quisesse ou que pudesse, por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu querer ir mais longe que eu
Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo
E já que um dia montei agora sou cavaleiro
Laço firme e braço forte num reino que não tem rei.

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